domingo, 7 de janeiro de 2007

Amor Que Morre - por Nelson Rodrigues - primeira parte

Conforme prometi, eis a última crônica escrita por NR (hoje apenas a primeira parte), publicada no dia em que ele morreu.
Eu não ía falar sobre isto hoje. Começaria a transcrever amanhã. Mas é que ontem vieram aqui em casa A., M., e seu filho A. E aconteceu que A., o pai, falou umas palavras vindas tão de dentro do coração, e ele é mesmo o meu preferido, na sua profissão, que eu fiquei com a alma impressionada. De lá para cá andei pensando umas coisas, e uma coisa leva a outra, e ninguém está entendendo nada, eu sei, mas eu sei o que quero dizer, ou nem sei exatamente... Enfim, com vocês, Nelson Rodrigues.


"1 - Amigos, estou batendo esta crônica e, ao mesmo tempo, ouvindo uma valsa linda, que o rádio do vizinho está tocando. Identifico a melodia. É uma valsa que não envelhece e que se chama 'Quando Morre o Amor'. Sempre a ouço com encanto e, mesmo, com uma certa mágoa. O que é bonito dói na gente. E só não concordo com o título. Nenhum amor tem, ao morrer, esta doçura evocativa, esta melancolia dilacerada. O título da valsa deveria ser: 'Quando o Amor Nasce'.

2 - Eis a verdade: o amor que morre não deixa nenhuma nostalgia, e eu diria mesmo, não deixa nada. Ou por outra: deixa o tédio. O que nos fica dos amores possuídos e passados é simplesmente o tédio, talvez o ressentimento, talvez o ódio. Abominamos o ex-ser amado. Intimamente, nós o acusamos de ter destruído o nosso sonho. E vamos e venhamos: que coisa atroz é o amor que deixou de sê-lo. Mas o que eu queria dizer é o seguinte: há um equívoco na valsinha nostálgica.

3 - Eu diria, ainda, que a morte de um amor é pior do que a morte pessoal e física. Só uma coisa espanta: que se possa sobreviver a um amor. Eu me lembro de um vizinho que tive, na minha adolescência. Era um rapaz igual a milhares, igual a milhões. De uma larga e irresistível simpatia humana. O seu 'bom-dia' não era polidez, mas amor. Pois bem, um dia, esse rapaz ama. Foi uma paixão de vizinhos. Aconteceu, então, o seguinte: ele entregou-se ao amor, pôs no amor a generosa totalidade do seu ser.

4 - Mas enquanto ele fazia um amor de ópera, com um certo halo de tragédia, a menina era superficial, uma frívola ou, como nós chamamos convencionalmente, 'uma cabecinha de vento'. Ela não sentia, no seu romance, o peso do sonho. Até que, uma tarde, na cidade, o rapaz a vê, de passagem, num táxi, com um homem casado. O que houve, nele, antes da dor, foi o espanto. Disse para si mesmo: 'Ela me trai. Eu sou traído". E o pior é que não sofria. Voltou para casa com a alma vazia de desespero. Essa impossibilidade de sofrer foi o mais duro dos castigos.

5 - Que faz o rapaz? Chega em casa, tranca-se. E, diante do espelho, mete uma bala na cabeça. A princípio, todos deduziram: 'Matou-se por amor.' Depois, entretanto, descobriram, em cima da mesinha, um bilhete. Lá estava escrito: 'Morro porque deixei de amar'. A rua, um bairro ou a cidade sentiu, nessas palavras finais, uma espécie de canto da solidão infinita. Eis a verdade: quem experimenta o verdadeiro amor já não sabe viver sem ele."

(continua)

11 comentários:

Luis disse...

Lindo!!!

Anônimo disse...

Suzi,
Muito profundo e verdadeiro.
"Eis a verdade: quem experimenta o verdadeiro amor já não sabe viver sem ele."

Abraços,

Zeds

Anônimo disse...

De todas as crónicas que publicaste até hoje de NR, esta é aquela que me toca fundo. Dizes que a escreveu no dia em que morreu? Se calhar, é mesmo verdade que o princípio pode ser o fim.

Anônimo disse...

De todas as crónicas que publicaste até hoje de NR, esta é aquela que me toca fundo. Dizes que a escreveu no dia em que morreu? Se calhar, é mesmo verdade que o princípio pode ser o fim.

Suzi disse...

Pois é, Lad, continuo a ficar bege, de saber que esse texto é do NR...

Suzi disse...

Oi, Zeds, sumidinha!!
;o)

Há trechos lindos, nessa crônica. Além de tudo, a conclusão dele é ótima. Leia amanhã.
Beijos!

(seu Manchester tá embalado mesmo, hein?! os seis pontos não diminuem por nada!!)

Suzi disse...

Pois é, Miguel. Enquanto era publicada, na seção própria, a manchete principal do jornal trazia: "MORRE NELSON RODRIGUES".

Acho que tens toda a razão, ao lembrar que "o princípio pode ser o fim". Porque, realmente, ele andou escrevendo, a vida toda, coisas bem diferentes...

Imagine que é o mesmo que escreveu "toda mulher gosta de apanhar"????
Como se autodenominou, era o "anjo pornográfico". E terminou escrevendo assim...

Anônimo disse...

"Eis a verdade: quem experimenta o verdadeiro amor já não sabe viver sem ele."

só isso já valeria toda a leitura...

beijos, boneca

* menina, juliana paes canta a tal música q citei no pasto. q posso fazer? e canta bonitinho, tenho que reconhecer. mas é uma vaca sem estirpe... não é como nós.....

Suzi disse...

Um NR romântico... quem diria...

p.s.
eu sei que
ela canta, também, mas não é tão mais bonito falar só "frejat"???
:o))

ela é escandalosa demais pra pastar no seu pasto, mesmo como visitante. hohohohoho!!!

Custódia C. disse...

Depois de ler este texto, é difícil imaginar o outro NR de que falas.
É irónico que tenha escrito isso no último dia de vida …

Suzi disse...

Pois é, Ccc.
Por isso tão incrível!
Por isso me ative, estes dias, a transcrever integralmente os textos.
;o)